sexta-feira, setembro 08, 2006

Detesto ir às finanças ou aos correios ou algo que os valha. Nestes sítios, nada me corre bem, é só mal-entendidos, dificuldades, é só gente medonha e mal-humorada, salvo doces e raras excepções. Hoje entrou um sem-abrigo nas finanças, bêbedo de não se conseguir perceber metade do que dizia, perdido no meio dos papéis que trazia nas mãos e deixava cair e nem sabia bem para que serviam, afastado do significado de todas aquelas senhas de cores diferentes e filas… Não sei bem o que estava lá a fazer, mas sei que nem se aguentava de pé e que, no meio de tanta gente, tinha que vir sentar-se ao meu lado e meter conversa comigo, concentrada que estava nas minhas leituras. Falou, falou, falou, e eu ia dizendo que sim, sem perceber metade. Às tantas, pára, toca-me no braço, como uma criança a pedir atenção, e pergunta-me: “Ó Doutora, o que é que está a ler?”. Olho para ele e respondo-lhe, atónita mas séria. “Luigi Pirandello”. “Ah? (e faz um movimento com a cabeça, para a frente, como que a dizer que não tinha entendido patavina) Como é que se chama o livro?!”. “Ele foi Mattia Pascal”. Ele fica a olhar para o livro e eu regresso à história, meia desconcentrada. As pessoas riram-se lá. Eu sorri. Ele franziu o sobrolho. Olhava para o livro desconfiado, bêbedo, curioso, intrigado, e franzia o sobrolho. Já me tinha pedido para passar à minha frente e eu tinha dito que sim, mas que não sabia se o iam atender sem senha. “Deixa-me passar à sua frente? Mas é de coração ou não? Se se importar, eu tiro senha, não faz mal! Mas se me deixar ir, não preciso de senha para nada! É de coração?” Enquanto não lhe disse que era de coração, não se calou. Também me perguntou se estava na fila certa e mostrou-me um pedaço de papel amachucado e rasgado onde estava escrito à mão, com caneta azul, “IRS”. Eu disse-lhe que sim, que estava na fila certa. Ele disse-me que não gostava da ruiva que estava do outro lado do balcão, porque estava sempre a mandá-lo para outras repartições e sítios e que andava há quatro dias a tratar dos seus assuntos. Também me disse que estava cansado porque nesse dia tinha dormido na rua, e que tinha 50 anos e não tinha emprego. E que, no outro dia, o Rei da Fruta da Baixa lhe ofereceu sete euros por sete horas por dia para carregar fruta e fazer outros trabalhos, não percebi bem esta parte… Sei que ele o mandou dar uma volta. Quando chegou a minha vez, já ele tinha adormecido todo torto na cadeira. Fui acordá-lo. Toquei-lhe no braço, quase tive que o esmurrar para despertá-lo daquele coma; ele acordou todo estremunhado e pôs-se a gritar que era a vez dele. “Sou eu, agora sou eu!”. As pessoas que estavam atrás de mim fizeram má cara, perguntaram se era meu familiar. Eu disse que não era meu familiar – e eles sabiam perfeitamente que não era, porque tinham ouvido toda a conversa, ainda que tivesse sido um tanto ou quanto ininteligível. Disse simplesmente que o deixava ir na minha vez e que, por isso, se achassem bem, eu podia ficar para último. Ninguém teve coragem para isso, mas quase. Ele veio dar-me um aperto de mão, porque se apercebeu da má cara que as pessoas fizeram. Devia era ter-lhe dado o livro que tanto o interessou, mas para isso não tive eu coragem. E ainda agora me rio, não dele, vagabundo, mas de mim, desconcertada com aquela pergunta inocente, feita alto e bom som nas finanças: “Ó Doutora, o que é que está a ler?”. Uns segundos, enquanto levanto os olhos do livro e olho para ele. Não pode ser para mim, penso. “Luigi Pirandello”, respondo o mais calmamente possível. Quase corei.

2 comentários:

Che disse...

Pensei que já não existissem Mulheres do teu gabarito. Mais Mil estrelas circulam na tua atmosfera.
besos

Anónimo disse...

Esses seres que vagabundam por aí colocam as pessoas desconcertadas ao perceberem o tão perto que estão deles... buh...

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