Detesto ir às finanças ou aos correios ou algo que os valha. Nestes sítios, nada me corre bem, é só mal-entendidos, dificuldades, é só gente medonha e mal-humorada, salvo doces e raras excepções. Hoje entrou um sem-abrigo nas finanças, bêbedo de não se conseguir perceber metade do que dizia, perdido no meio dos papéis que trazia nas mãos e deixava cair e nem sabia bem para que serviam, afastado do significado de todas aquelas senhas de cores diferentes e filas… Não sei bem o que estava lá a fazer, mas sei que nem se aguentava de pé e que, no meio de tanta gente, tinha que vir sentar-se ao meu lado e meter conversa comigo, concentrada que estava nas minhas leituras. Falou, falou, falou, e eu ia dizendo que sim, sem perceber metade. Às tantas, pára, toca-me no braço, como uma criança a pedir atenção, e pergunta-me: “Ó Doutora, o que é que está a ler?”. Olho para ele e respondo-lhe, atónita mas séria. “Luigi Pirandello”. “Ah? (e faz um movimento com a cabeça, para a frente, como que a dizer que não tinha entendido patavina) Como é que se chama o livro?!”. “Ele foi Mattia Pascal”. Ele fica a olhar para o livro e eu regresso à história, meia desconcentrada. As pessoas riram-se lá. Eu sorri. Ele franziu o sobrolho. Olhava para o livro desconfiado, bêbedo, curioso, intrigado, e franzia o sobrolho. Já me tinha pedido para passar à minha frente e eu tinha dito que sim, mas que não sabia se o iam atender sem senha. “Deixa-me passar à sua frente? Mas é de coração ou não? Se se importar, eu tiro senha, não faz mal! Mas se me deixar ir, não preciso de senha para nada! É de coração?” Enquanto não lhe disse que era de coração, não se calou. Também me perguntou se estava na fila certa e mostrou-me um pedaço de papel amachucado e rasgado onde estava escrito à mão, com caneta azul, “IRS”. Eu disse-lhe que sim, que estava na fila certa. Ele disse-me que não gostava da ruiva que estava do outro lado do balcão, porque estava sempre a mandá-lo para outras repartições e sítios e que andava há quatro dias a tratar dos seus assuntos. Também me disse que estava cansado porque nesse dia tinha dormido na rua, e que tinha 50 anos e não tinha emprego. E que, no outro dia, o Rei da Fruta da Baixa lhe ofereceu sete euros por sete horas por dia para carregar fruta e fazer outros trabalhos, não percebi bem esta parte… Sei que ele o mandou dar uma volta. Quando chegou a minha vez, já ele tinha adormecido todo torto na cadeira. Fui acordá-lo. Toquei-lhe no braço, quase tive que o esmurrar para despertá-lo daquele coma; ele acordou todo estremunhado e pôs-se a gritar que era a vez dele. “Sou eu, agora sou eu!”. As pessoas que estavam atrás de mim fizeram má cara, perguntaram se era meu familiar. Eu disse que não era meu familiar – e eles sabiam perfeitamente que não era, porque tinham ouvido toda a conversa, ainda que tivesse sido um tanto ou quanto ininteligível. Disse simplesmente que o deixava ir na minha vez e que, por isso, se achassem bem, eu podia ficar para último. Ninguém teve coragem para isso, mas quase. Ele veio dar-me um aperto de mão, porque se apercebeu da má cara que as pessoas fizeram. Devia era ter-lhe dado o livro que tanto o interessou, mas para isso não tive eu coragem. E ainda agora me rio, não dele, vagabundo, mas de mim, desconcertada com aquela pergunta inocente, feita alto e bom som nas finanças: “Ó Doutora, o que é que está a ler?”. Uns segundos, enquanto levanto os olhos do livro e olho para ele. Não pode ser para mim, penso. “Luigi Pirandello”, respondo o mais calmamente possível. Quase corei.
sexta-feira, setembro 08, 2006
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2 comentários:
Pensei que já não existissem Mulheres do teu gabarito. Mais Mil estrelas circulam na tua atmosfera.
besos
Esses seres que vagabundam por aí colocam as pessoas desconcertadas ao perceberem o tão perto que estão deles... buh...
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