Mea culpa
Ando há já muito tempo com este post a martelar-me na cabeça, uma espécie de mea culpa que devo fazer antes que a consciência me vergue com tanto peso. Vem isto atrasadíssimo, depois de tudo já se ter dito e desdito sobre o tal, aquele, episódio naquela escola. Cá vai; espero ficar mais aliviada. Pena é que nenhum dos meus antigos professores seja leitor deste blogue…
J.P. – era assim que lhe chamávamos. Pronunciávamos as iniciais em inglês, porque era essa a disciplina que ele nos ensinava, embora ele fosse, simplesmente, João Paulo, em português. Foi meu professor mais do que um ano no, então, Instituto Britânico que frequentávamos ao final da tarde, depois das aulas da escola.
Se já durante o dia éramos umas pestes mal-educadas e mal comportadas, naquele instituto antigo e cheio de escadas, representávamos o fim do sonho de qualquer professor que ainda sonhasse ensinar.
Se hoje quisesse dizer por que razão gritavam connosco, por que razão faziam queixa aos nossos pais, por que razão nos ameaçavam com faltas, castigos e por aí fora, acho que já não sabia precisar. Mas sei que éramos uns demónios, boicotávamos as aulas com palermices, com conversas paralelas ensurdecedoras e infinitas partidas de bom e mau gosto, só porque sim. Não havia nada naquela atitude mal comportada que não fosse só “porque sim”, porque nos apetecia rir às gargalhadas para o lado e para o ar a toda a hora.
Hoje, com 27 anos, penso que devia ser o inferno ser nosso professor. Hoje, se passasse por algum deles na rua, teria vergonha. Todos diziam que individualmente éramos pessoas ternas, simpáticas, mas juntos - 30 adolescentes juntos – perdíamos a noção razoável do que é bonito fazer e do que não é. Sim, bonito é o adjectivo que mais depressa me ocorre. Não é bonito desrespeitar um professor porque ele não tem a tal mão de ferro; não era bonito, como fazíamos, abusar até mais não, só porque nos apercebíamos de que com aquela pessoa, a maior parte das vezes, muito bondosa e dócil, podíamos ir até ao final da linha. Sem limites.
E surgiu-me este post a propósito de alguns comentários que ouvi acerca do tal episódio. Não é bonito dizermos que é o professor que não se sabe impor, que os professores têm que se saber impor, com a tal autoridade e predicados afins. Se bem entendo então, para algumas pessoas, devemos compreender e tolerar que os adolescentes se portem mal se os professores forem frágeis e bondosos. A culpa foi deles, não se souberam impor. E apenas são merecedores de respeito os assertivos, seguros, autoritários. Será isto?
Não, não são estes os valores em que, hoje, felizmente, acredito. Tive que crescer, é certo, e pôr de lado o infantil e primário sentimento que nos faz respeitar e “baixar a bola” diante de quem nos fala direito, olhos nos olhos, e abusar de quem nos fala de forma bondosa, não levanta a voz e demonstra fragilidades e inseguranças. Por mais que esse professor, tímido, saiba e possa ensinar a pessoas interessadas em aprender. Tive que crescer para ver que o que fazíamos era muito feio. Nunca chegámos ao tal confronto físico de que muito se falou. Mas perdi a noção de quantas vezes testámos o limite das pessoas que nos tentavam meter alguma coisa na cabeça acerca de história ou de matemática. Perdi a noção das vezes em que eles, os professores, saíram disparados da sala, sob o nosso olhar atónito, das vezes em que choraram, das vezes em que arrumaram a pasta e disseram “saiam, todos, por favor”. Das vezes em que diziam isto de olhos baixos, uma mão na cabeça, outra na pasta. Nós, palermitas com as hormonas desreguladas, começávamos “ó stor ou stora, desculpe…”. Às vezes, também tínhamos estes ataques de consciência, embora nem sempre. Mas, mesmo quando tínhamos, era sempre demasiado tarde e, no dia seguinte, já tínhamos esquecido. Milagres da idade.
Mas vinha isto tudo a propósito do J.P. – mas podia vir a propósito de muitos outros professores da escola e do instituto (um deles, não o J.P., mais tarde até me ajudou num trabalho da faculdade e emprestou-me um livro, apesar das dores de cabeça que lhe dei).
Mas o J.P.. O J.P. era uma pessoa adorável, adorável ao ponto de ficar com as lágrimas nos olhos quando ouvia a música que lhe lembrava o dia casamento - a música era, por sinal, foleira até mais não e, por isso mesmo, alvo imediato da nossa chacota. Adorável ao ponto de me perguntar, a sós, naquela fase em que nos vestimos de preto e só lemos poesia, se estava tudo bem comigo. Nessa altura, em que só lia Pessoa e usava casacos de lã cinzentos como o Kurt Cobain, ficava sempre muito calada nas aulas e pensar no ontem ou no amanhã (em que é que pensava? No Jim Morrisson ressuscitado? Nem sei...), o J.P. veio falar comigo, para me dizer que estava ali para o que desse e viesse. E este homem chorava com o raio da música ‘cause I can't fight this feeling any more… Como tínhamos coragem de lhe boicotar as aulas? Mas o pior é que tínhamos mesmo e nisso a adolescência é lixada, perdoem-me a expressão. Conseguimos ser tudo ao mesmo tempo, dentro de nós é só confusão, somos adoráveis e meigos e rebeldes e inconsequentes e cruéis num minuto. O que vale é que voltei a apanhar o J.P. no meu último ano do Instituto, já com uns 16 anitos e, nessa altura, creio que já havia alguma luz na minha cabecita. Acho que nesse ano não me portei mal e o resultado foi que me fartei de aprender. No fim do ano, antes do exame com os professores que vinham de Inglaterra, quase nem precisei de estudar. As aulas tinham valido a pena. E continua a não me sair da cabeça a imagem daquela aula em que tínhamos que "apanhar" a letra da música: ‘cause I can’t fight this feeling any more… Aqueles olhos chorosos, apaixonados e meigos. Como podíamos ser tão maus para (algumas) pessoas tão adoráveis?
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